Abbey Road é, sem dúvida, um dos álbuns mais icônicos dos Beatles — e também um dos meus preferidos. A elegância da bateria de Ringo, as linhas de baixo sofisticadas de Paul, o rock’n’roll cru de John em seu auge e a criatividade refinada de George abriram caminho para as carreiras solo dos quatro garotos de Liverpool. Eles talvez não tenham sido os maiores símbolos de rebeldia da época, mas atravessar aquela faixa de segurança foi, certamente, o gesto que selou para sempre sua imagem de bons moços.
E é justamente essa capa que sempre me intriga: como conseguiram registrar aquela foto atravessando a rua, no meio do trânsito londrino?
Faixas de segurança são um marco da civilização. Uma pintura no asfalto — simples, mas poderosa — ordena que a força bruta recue para que o mais frágil possa ar. Um gesto de respeito, que custa apenas alguns segundos, talvez minutos, mas que vale uma vida. Num país em que atrasos são quase parte da rotina, mesmo quem está com pressa poderia muito bem esperar.
Infelizmente, essa teoria parece não se aplicar às ruas de Caxias do Sul. Caminho bastante por aqui e raramente vejo motoristas pararem de forma espontânea para um pedestre atravessar. Em alguns casos, nem mesmo o sinal vermelho parece bastar! Não creio que seja por falta de habilidade — afinal, em Gramado, os mesmos motoristas param a cada esquina e se orgulham dizendo: “até parece que estamos na Europa!”
Claro que isso depende de qual Europa estamos falando. Mas há, sim, uma herança do pensamento romano sobre civilização: nela, o interesse coletivo deve sempre se sobrepor aos impulsos individuais. Para Cícero, em De Res Publica, a vida civilizada nasce de um povo “unido por um consenso do direito e uma comunhão de interesses”. Em outras palavras, a barbárie começa quando o bem comum é ignorado e o egoísmo acelera — mesmo que seja em direção a um pedestre.
Afinal, será mesmo que pisar no freio exige mais esforço do que buzinar?
Talvez a verdadeira travessia civilizatória comece não na faixa, mas na consciência.